15 de janeiro de 2014

Ferida Antiga.

Cheguei a minha casa e só esperava o que espero todos os dias: banho, jantar, noticiário e a maravilhosa companhia da minha cama e os meus travesseiros da NASA. Meus planos foram interrompidos assim que me despi da saia e da camisa que havia usado o dia todo no trabalho, pela campainha que tocou. Amaldiçoei mentalmente o porteiro que muito provavelmente havia esquecido outra vez de me entregar as correspondências quando passei por ele, pedi que ele esperasse por um instante enquanto vesti o roupão e caminhei até a porta. Ao abrir, minha boca também se abriu na forma de um O. Eu não acreditei no que vi. Meus olhos também arregalados, minha sorte foi que tive forças para me segurar a porta. Mal podia acreditar naquilo que meus olhos viam, não importando o motivo pelo qual aquilo estava acontecendo. Ouvi a voz me dizer:
- Está tudo bem? Eu posso entrar?
Não sei quanto tempo eu demorei para responder. Mas, foi o suficiente para que ele sentisse a necessidade de repetir as perguntas. Não sabia o que dizer e tampouco quais motivos fizeram ele vir até a minha porta, sequer como fez para entrar sem ser anunciado, como só acontecia há alguns anos. Puxei o ar suficiente para preencher completamente os meus pulmões e cocei os olhos na esperança de ao tirar as mãos de sua frente, ele não estivesse ali, mas ele estava e eu fui obrigada a lidar com aquela situação. Não como uma criança que tranca a porta na tentativa de se esconder do bicho papão, mas como adulta que enfrenta tudo de frente. Fiz que sim com a cabeça e sorri, emendando logo em seguida:
- Não tão bem como eu gostaria, ainda não posso passar meus dias esticada numa cadeira de sol enquanto sinto meu corpo ser preenchido pela vitamina D. Mas, bem.
Ele foi entrando e eu fechei a porta atrás de seu corpo. Pedi que esperasse na sala enquanto eu colocava uma roupa e voltei com um copo d’água bem gelado para ele. Entre todas as coisas que aprendi na vida, uma delas é ser uma boa anfitriã, obviamente quando estou com todos os meus parafusos no lugar. Ele sorriu agradecido e por um instante era como se o tempo não tivesse passado. Era como se agora fosse o dia seguinte da nossa última briga e ele tivesse chegadp para dar as explicações necessárias. Mas não era. Nossa última briga aconteceu há alguns anos e isso fica nítido quando olho para as entradas generosas em sua testa e os pequenos pés de galinhas que se formam ainda discretamente no canto de seus olhos. Então o que mais o havia trazido para este momento sentado em meu sofá com o corpo inclinado para frente e seus pulsos apoiados em seus joelhos? Eu não fazia ideia. Embora, se eu bem o conheci um dia em sua vida, havia um bom motivo. Não quis perguntar. Sentei-me no sofá oposto ao dele, de frente e com as pernas cruzadas sobre o sofá, como uma menina se senta ao brincar. Eu não era a única que observava o trabalho árduo do tempo, ele também parecia avaliar cada detalhe meu que estava diferente: os olhos pintados, o rosto que era de menina agora de mulher e até a pequena tatuagem em meu pulso “let it be” ele pareceu notar, não teceu nenhum pequeno comentário sequer, mas seus olhos varriam cada centímetro de mim. Não falamos nada. O silêncio foi quebrado apenas pelo aviso de nova mensagem no whatsapp no meu celular, eu olhei a tela iluminada e deslizei o dedo desbloqueando-a, ele se sentiu mais a vontade para olhar as horas no seu aparelho enquanto eu respondia, devolvi o celular na mesa de centro e logo a tela se bloqueou. Ele então perguntou:
- Era alguém importante, não é?
Eu não senti muita firmeza em sua voz, parece que ele tinha dúvidas se queria mesmo saber a resposta. E eu assenti com a cabeça, positivamente:
- Era sim, se não fosse importante não teria motivos para ter o meu número pessoal não é?
Ele não respondeu. Os olhos se reviravam enquanto ele parecia procurar forças. Eu sentada sem entender, num ímpeto perguntei:
- Como você conseguiu entrar? Quero dizer, sem nem mesmo ser anunciado?
                Ele sorriu sacana e aquele riso gostoso pelo qual eu fui apaixonada um dia, me irritou. Serrei os dentes e rolei os olhos. Fui firme:
                - Anda, me diga! Como você conseguiu?
                - Eu fiz amizade com o porteiro. Imaginei que você tinha chegado e resolvi parar. Disse a ele que eu era um amigo de muito tempo atrás, que morou fora algum tempo e agora estava de volta. Sem seu número. Só o endereço de cabeça. Ele não ia querer estragar a surpresa do reencontro, né?
                - Entra ano e sai ano e você continua o mesmo cachorro de sempre. – Disse dando um tapa estalado no sofá de couro branco. – Ai, doeu. – Soprei a palma da mão ardente.
                - Você continua linda. Quero dizer, ainda mais linda. O tempo fez mais bem pra você do que para mim. Você tem traços de mulher agora.
                - Ok, obrigada. Mas...
                - Mas... o que eu tô fazendo aqui, né?
                - Isso. Exatamente isso.
                - Você sempre me pedia uma resposta...
                Ele tinha razão. Passei muitas noites chorando e sonhando com o dia que ele chegaria e me diria tim tim por tim tim das suas razões. Eu sempre pedia que me dissesse o motivo ou razão de todos aqueles acontecimentos. E ele sempre hesitou em suas respostas. Dizia todo tipo de coisa. Mas, nenhuma, em tempo algum curou minha dor. Minha ferida é antiga. É do tempo que eu ainda acreditava em felizes para sempre. Tem a idade da fantasia. Só que agora é muito diferente.
                - Você disse certo. Eu sempre quis. Mas, cheguei a um estado que não quero mais. Descobri que colocar o dedo em ferida antiga só faz sangrar. E eu não quero mais. Eu chorei muito. Quem não me deu as costas acompanhou meu sofrimento. Ir dormir diariamente aos prantos não é nem um pouco prazeroso. Eu vi o chão se abrir sob meus pés e você nem aí. Suas respostas ecoavam vazias em meus ouvidos e eu não conseguia enxergar onde tinha parado todas aquelas juras de amor. Agora as coisas são diferentes. Eu tenho minha própria vida. Sou livre e me amo. Isso faz de mim uma pessoa muito melhor, sabe?
Ele assentiu com a cabeça e eu calei. O silêncio reinou naquele ambiente, ele abria os lábios como se fosse falar e não conseguisse encontrar as palavras, titubeando. Havia uma confusão de sentimentos em mim e nele, que se levantou, parecia pronto para ir embora. Se eu não queria mais respostas o que mais ele poderia fazer ali? Insistir. Se levantou e rodeou o sofá, apoiou a palma das duas mãos nas costas do sofá e apertou, eu via a força dos seus braços naquele movimento, quando as palavras finalmente saíram:
- Olha, as coisas não são bem assim. Eu sempre te disse que você era a menina mais especial do mundo, simplesmente porque você é! Eu nunca precisei mentir sobre isso. E eu aprendi que as mentiras machucam. Mas, você era uma menina! E eu era um homem. Você tinha um mundo para descobrir e eu já tinha um monte de cicatrizes.
- Você foi ridículo! E está sendo ainda mais, se prestando a este papel, viu?
- Não diga isso. Não pense que está sendo fácil. Não pense que foi fácil. Você sabe o quanto é difícil abrir mão de algo que você ama?
- Ah, sim. Até porque é muito fácil ver a pessoa que você ama fazer tudo que você fez e ainda te dar as costas. Tão fácil que você deveria experimentar. Mas, você pode parar de falar? Foi difícil, mas acabou. Eu não quero mais saber dessa história. Você pode ser meu amigo se quiser.
- Seu amigo? – Ele disse arqueando a sobrancelha.
- É, meu amigo. – Fui firme.
- Você não tem nenhuma mágoa mais, por isso não quer mais falar a respeito?
- Eu tenho. É claro que eu tenho. Quando eu te conheci, eu tinha todos os sonhos do mundo. Era uma menina com sede do amor. E eu vi em você minha possibilidade de mundo. Eu encontrei sossego no seu amor e carinho. Você, babaca, era meu amor tranquilo com sabor de fruta mordida. Mas, tudo isso durou muito menos do que eu esperava. Você dizia que sabia o que era o amor porque me amava e depois? Depois resolveu me devolver como se devolve uma roupa com defeito? Você foi um idiota! Você soube direitinho como estragar tudo. Eu senti como se você tivesse arrancado meu coração do meu peito e apertasse pra vê-lo sangrar. Doía muito. Doía absurdamente. Doeu ao ponto que a própria dor serviu de analgésico. E sobrou só a tristeza, saber que você tinha o potencial para ser o homem da minha vida e se contentou apenas em ser uma decepção.
Foi então que olhei em seus olhos marejados. Era como se todas as palavras que eu tinha guardado para mim por todo aquele tempo o fizesse sentir-se ainda mais culpado de tudo. Eu não tinha certeza de que aquilo estava mesmo acontecendo, precisei verbalizar para não pensar que se tratava de um sonho ou pesadelo:
- Você está chorando? Não chora... – Senti minha voz embargar, mas insisti. – Não chora porque não vale a pena. Nós fomos prejudicados por tudo o que aconteceu. A culpa foi sua, eu dei o meu melhor e dei algumas chances para você dar o seu melhor também, mas não aconteceu e se não aconteceu é porque talvez não era pra ser. – as primeiras lágrimas rolaram pela minha face.

Eu estava chorando também e não entendia o motivo direito. Não é que eu sentia satisfação ou o gostinho da vingança finalmente na minha boca, não é. Eu não sou do tipo que se alegra com o sofrimento alheio só porque este um dia compactuou com o meu. Mas, eu senti sim uma pequena alegria, pela primeira vez eu senti que ele também pesava pelo nosso fim, por alguns instantes tive a sensação de que nenhuma lágrima tinha sido em vão.  Eu me levantei e fui ao encontro do seu abraço, fiquei na ponta dos pés e envolvi meus braços em seu pescoço, pedi baixinho que ele não chorasse porque já não mais adiantaria, afastei meu corpo do dele e estiquei minha mão até a sua face onde cuidadosamente secava com as pontas dos meus dedos. Dei muito mais carinho do que recebi quando as lágrimas eram minhas e se pude fazê-lo era apenas porque eu já não me sentia tão ferida, consegui ver que ali havia uma ferida antiga e aberta. E o que eu poderia fazer? Ele me abraçou forte outra vez e então se despediu de mim, pediu meu telefone e deu o dele, avisou que eu poderia ligar quando quisesse, que poderia contar com a ajuda dele para o que eu precisasse, lembrei ele de que eu não era a menininha que precisava de cuidados que ele conheceu tempos atrás e ele sorriu magoado, afirmando que sabia daquilo, se desculpou outra vez e se dirigiu até a porta. Abri para que ele pudesse sair e o vi partir, fechei a porta atrás do meu corpo e olhei para o relógio que estava pendurado na parede, havia passado algumas horas desde que ele chegou. O cheiro dele ainda predominava o ambiente. Sentei no sofá, abracei minhas pernas enquanto pensava no que havia acontecido, precisava respirar para assimilar. Nem por um instante o quis de volta em minha vida, tampouco suas mentiras. Mas, a sua verdade de olhar meus olhos e mostrar toda verdade por trás daquela ferida fez com que meu coração se aliviasse. Alívio em perdoar. Jamais em perdurar.