Cheguei a
minha casa e só esperava o que espero todos os dias: banho, jantar, noticiário
e a maravilhosa companhia da minha cama e os meus travesseiros da NASA. Meus
planos foram interrompidos assim que me despi da saia e da camisa que havia
usado o dia todo no trabalho, pela campainha que tocou. Amaldiçoei mentalmente
o porteiro que muito provavelmente havia esquecido outra vez de me entregar as
correspondências quando passei por ele, pedi que ele esperasse por um instante
enquanto vesti o roupão e caminhei até a porta. Ao abrir, minha boca também se
abriu na forma de um O. Eu não acreditei no que vi. Meus olhos também
arregalados, minha sorte foi que tive forças para me segurar a porta. Mal podia
acreditar naquilo que meus olhos viam, não importando o motivo pelo qual aquilo
estava acontecendo. Ouvi a voz me dizer:
- Está tudo
bem? Eu posso entrar?
Não sei quanto
tempo eu demorei para responder. Mas, foi o suficiente para que ele sentisse a
necessidade de repetir as perguntas. Não sabia o que dizer e tampouco quais
motivos fizeram ele vir até a minha porta, sequer como fez para entrar sem ser
anunciado, como só acontecia há alguns anos. Puxei o ar suficiente para
preencher completamente os meus pulmões e cocei os olhos na esperança de ao
tirar as mãos de sua frente, ele não estivesse ali, mas ele estava e eu fui
obrigada a lidar com aquela situação. Não como uma criança que tranca a porta
na tentativa de se esconder do bicho papão, mas como adulta que enfrenta tudo
de frente. Fiz que sim com a cabeça e sorri, emendando logo em seguida:
- Não tão bem
como eu gostaria, ainda não posso passar meus dias esticada numa cadeira de sol
enquanto sinto meu corpo ser preenchido pela vitamina D. Mas, bem.
Ele foi
entrando e eu fechei a porta atrás de seu corpo. Pedi que esperasse na sala
enquanto eu colocava uma roupa e voltei com um copo d’água bem gelado para
ele. Entre todas as coisas que aprendi na vida, uma delas é ser uma boa
anfitriã, obviamente quando estou com todos os meus parafusos no lugar. Ele
sorriu agradecido e por um instante era como se o tempo não tivesse passado.
Era como se agora fosse o dia seguinte da nossa última briga e ele tivesse
chegadp para dar as explicações necessárias. Mas não era. Nossa última briga
aconteceu há alguns anos e isso fica nítido quando olho para as entradas
generosas em sua testa e os pequenos pés de galinhas que se formam ainda
discretamente no canto de seus olhos. Então o que mais o havia trazido para
este momento sentado em meu sofá com o corpo inclinado para frente e seus pulsos
apoiados em seus joelhos? Eu não fazia ideia. Embora, se eu bem o conheci um
dia em sua vida, havia um bom motivo. Não quis perguntar. Sentei-me no sofá
oposto ao dele, de frente e com as pernas cruzadas sobre o sofá, como uma
menina se senta ao brincar. Eu não era a única que observava o trabalho árduo
do tempo, ele também parecia avaliar cada detalhe meu que estava diferente: os
olhos pintados, o rosto que era de menina agora de mulher e até a pequena
tatuagem em meu pulso “let it be” ele pareceu notar, não teceu nenhum pequeno
comentário sequer, mas seus olhos varriam cada centímetro de mim. Não falamos
nada. O silêncio foi quebrado apenas pelo aviso de nova mensagem no whatsapp no
meu celular, eu olhei a tela iluminada e deslizei o dedo desbloqueando-a, ele
se sentiu mais a vontade para olhar as horas no seu aparelho enquanto eu
respondia, devolvi o celular na mesa de centro e logo a tela se bloqueou. Ele
então perguntou:
- Era alguém
importante, não é?
Eu não senti
muita firmeza em sua voz, parece que ele tinha dúvidas se queria mesmo saber a
resposta. E eu assenti com a cabeça, positivamente:
- Era sim, se
não fosse importante não teria motivos para ter o meu número pessoal não é?
Ele não
respondeu. Os olhos se reviravam enquanto ele parecia procurar forças. Eu
sentada sem entender, num ímpeto perguntei:
- Como você
conseguiu entrar? Quero dizer, sem nem mesmo ser anunciado?
Ele
sorriu sacana e aquele riso gostoso pelo qual eu fui apaixonada um dia, me
irritou. Serrei os dentes e rolei os olhos. Fui firme:
-
Anda, me diga! Como você conseguiu?
-
Eu fiz amizade com o porteiro. Imaginei que você tinha chegado e resolvi parar.
Disse a ele que eu era um amigo de muito tempo atrás, que morou fora algum
tempo e agora estava de volta. Sem seu número. Só o endereço de cabeça. Ele não
ia querer estragar a surpresa do reencontro, né?
-
Entra ano e sai ano e você continua o mesmo cachorro de sempre. – Disse dando
um tapa estalado no sofá de couro branco. – Ai, doeu. – Soprei a palma da mão
ardente.
-
Você continua linda. Quero dizer, ainda mais linda. O tempo fez mais bem pra
você do que para mim. Você tem traços de mulher agora.
-
Ok, obrigada. Mas...
-
Mas... o que eu tô fazendo aqui, né?
-
Isso. Exatamente isso.
-
Você sempre me pedia uma resposta...
Ele
tinha razão. Passei muitas noites chorando e sonhando com o dia que ele
chegaria e me diria tim tim por tim tim das suas razões. Eu sempre pedia que me dissesse o
motivo ou razão de todos aqueles acontecimentos. E ele sempre hesitou em suas
respostas. Dizia todo tipo de coisa. Mas, nenhuma, em tempo algum curou minha
dor. Minha ferida é antiga. É do tempo que eu ainda acreditava em felizes para
sempre. Tem a idade da fantasia. Só que agora é muito diferente.
-
Você disse certo. Eu sempre quis. Mas, cheguei a um estado que não quero mais.
Descobri que colocar o dedo em ferida antiga só faz sangrar. E eu não quero
mais. Eu chorei muito. Quem não me deu as costas acompanhou meu sofrimento. Ir
dormir diariamente aos prantos não é nem um pouco prazeroso. Eu vi o chão se
abrir sob meus pés e você nem aí. Suas respostas ecoavam vazias em meus ouvidos
e eu não conseguia enxergar onde tinha parado todas aquelas juras de amor.
Agora as coisas são diferentes. Eu tenho minha própria vida. Sou livre e me
amo. Isso faz de mim uma pessoa muito melhor, sabe?
Ele assentiu
com a cabeça e eu calei. O silêncio reinou naquele ambiente, ele abria os
lábios como se fosse falar e não conseguisse encontrar as palavras, titubeando.
Havia uma confusão de sentimentos em mim e nele, que se levantou, parecia
pronto para ir embora. Se eu não queria mais respostas o que mais ele poderia
fazer ali? Insistir. Se levantou e rodeou o sofá, apoiou a palma das duas mãos
nas costas do sofá e apertou, eu via a força dos seus braços naquele movimento,
quando as palavras finalmente saíram:
- Olha, as
coisas não são bem assim. Eu sempre te disse que você era a menina mais
especial do mundo, simplesmente porque você é! Eu nunca precisei mentir sobre
isso. E eu aprendi que as mentiras machucam. Mas, você era uma menina! E eu era
um homem. Você tinha um mundo para descobrir e eu já tinha um monte de
cicatrizes.
- Você foi
ridículo! E está sendo ainda mais, se prestando a este papel, viu?
- Não diga
isso. Não pense que está sendo fácil. Não pense que foi fácil. Você sabe o
quanto é difícil abrir mão de algo que você ama?
- Ah, sim. Até
porque é muito fácil ver a pessoa que você ama fazer tudo que você fez e ainda
te dar as costas. Tão fácil que você deveria experimentar. Mas, você pode parar
de falar? Foi difícil, mas acabou. Eu não quero mais saber dessa história. Você
pode ser meu amigo se quiser.
- Seu amigo? –
Ele disse arqueando a sobrancelha.
- É, meu
amigo. – Fui firme.
- Você não tem
nenhuma mágoa mais, por isso não quer mais falar a respeito?
- Eu tenho. É
claro que eu tenho. Quando eu te conheci, eu tinha todos os sonhos do mundo.
Era uma menina com sede do amor. E eu vi em você minha possibilidade de mundo.
Eu encontrei sossego no seu amor e carinho. Você, babaca, era meu amor
tranquilo com sabor de fruta mordida. Mas, tudo isso durou muito menos do que
eu esperava. Você dizia que sabia o que era o amor porque me amava e depois?
Depois resolveu me devolver como se devolve uma roupa com defeito? Você foi um
idiota! Você soube direitinho como estragar tudo. Eu senti como se você tivesse
arrancado meu coração do meu peito e apertasse pra vê-lo sangrar. Doía muito.
Doía absurdamente. Doeu ao ponto que a própria dor serviu de analgésico. E
sobrou só a tristeza, saber que você tinha o potencial para ser o homem da
minha vida e se contentou apenas em ser uma decepção.
Foi então que
olhei em seus olhos marejados. Era como se todas as palavras que eu tinha
guardado para mim por todo aquele tempo o fizesse sentir-se ainda mais culpado
de tudo. Eu não tinha certeza de que aquilo estava mesmo acontecendo, precisei
verbalizar para não pensar que se tratava de um sonho ou pesadelo:
- Você está
chorando? Não chora... – Senti minha voz embargar, mas insisti. – Não chora
porque não vale a pena. Nós fomos prejudicados por tudo o que aconteceu. A
culpa foi sua, eu dei o meu melhor e dei algumas chances para você dar o seu
melhor também, mas não aconteceu e se não aconteceu é porque talvez não era pra ser. – as primeiras lágrimas
rolaram pela minha face.
Eu estava
chorando também e não entendia o motivo direito. Não é que eu sentia satisfação
ou o gostinho da vingança finalmente na minha boca, não é. Eu não sou do tipo
que se alegra com o sofrimento alheio só porque este um dia compactuou com o
meu. Mas, eu senti sim uma pequena alegria, pela primeira vez eu senti que ele
também pesava pelo nosso fim, por alguns instantes tive a sensação de que
nenhuma lágrima tinha sido em vão. Eu me
levantei e fui ao encontro do seu abraço, fiquei na ponta dos pés e envolvi
meus braços em seu pescoço, pedi baixinho que ele não chorasse porque já não
mais adiantaria, afastei meu corpo do dele e estiquei minha mão até a sua face
onde cuidadosamente secava com as pontas dos meus dedos. Dei muito mais carinho
do que recebi quando as lágrimas eram minhas e se pude fazê-lo era apenas
porque eu já não me sentia tão ferida, consegui ver que ali havia uma ferida
antiga e aberta. E o que eu poderia fazer? Ele me abraçou forte outra vez e
então se despediu de mim, pediu meu telefone e deu o dele, avisou que eu
poderia ligar quando quisesse, que poderia contar com a ajuda dele para o que
eu precisasse, lembrei ele de que eu não era a menininha que precisava de
cuidados que ele conheceu tempos atrás e ele sorriu magoado, afirmando que
sabia daquilo, se desculpou outra vez e se dirigiu até a porta. Abri para que
ele pudesse sair e o vi partir, fechei a porta atrás do meu corpo e olhei para
o relógio que estava pendurado na parede, havia passado algumas horas desde que
ele chegou. O cheiro dele ainda predominava o ambiente. Sentei no sofá,
abracei minhas pernas enquanto pensava no que havia acontecido, precisava
respirar para assimilar. Nem por um instante o quis de volta em minha vida,
tampouco suas mentiras. Mas, a sua verdade de olhar meus olhos e mostrar toda
verdade por trás daquela ferida fez com que meu coração se aliviasse. Alívio em
perdoar. Jamais em perdurar.
Um comentário:
Dizem que um bom escritor leva ao seu leitor imaginar a cena. Imaginei toda a cena.
Olha moça, vc tem um oráculo pra saber o que se passa aqui, dentro de mim. rsrs
Talvez minha ferida ainda esteja aberta porque eu sonho com este momento. Ainda dói imaginar que me apaixonei por uma ideia e eu só queria saber que eu não fui em vão... Não sonho com um retorno, eu não dormiria de novo nos braços que me golpearam. Eu só preciso fechar a porta de vez, mas parece que pra isso ele precisa voltar pra eu dizer Adeus olhando em seus olhos.
Um abraço minha Pequena.
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