2 de novembro de 2010

Fique longe de mim (Odeio-te, meu amor)

           Do lado de fora já estava escuro, o restaurante não estava muito cheio e os dois se encontravam sentados frente a frente, os olhares se cruzavam de uma forma estranhamente desagradável e o ar que ela soltava a maior parte do tempo era pesado, dava para ouvir a certa distância. Ele, que a conhecia muito bem sabia que as coisas não estavam como ela desejava, no entanto, sabia também que não era qualquer pergunta que traria a resposta correta: O que estava acontecendo? Muito clichê. Esticou seu braço sobre a mesa até que a sua mão tocasse à dela que num movimento de reflexo recuou. Algo estava – definitivamente – muito errado. Ela fechou os olhos por alguns instantes e ele teve a impressão que contava até cem para não estourar, o seu rosto corou de tal forma que parecia maquiagem, mas era fúria, apenas fúria e ele sabia bem. Não tinha dúvidas de que algo a incomodava e parecia ser a presença dele. Por quê? Por quê? Essa era a única pergunta.
           Ele levantou a mão para chamar o garçom, sem desgrudar os seus olhos dos dela. Eles sempre forneciam tantas respostas, agora pareciam tão mais negros do que de fato era e infinitamente calados. Não demorou muito para o garçom se aproximar e anotar os pedidos. Ela, Letícia sorriu para o garçom. Ele sentiu-se ainda pior. Ela era mesmo complicada, estava sendo gentil quando a sua expressão gritava seu ódio e seus olhos calavam sua dor? Quem entenderia? Não ele, não naquele momento. Dezenas, centenas, milhares de pensamentos se misturavam a cada milésimo de segundo e ele fez a única coisa que poderia fazer:
           – O que te aflige, Letícia Marie?
           Os olhos dela o fuzilaram de tal forma que assistindo a cena você poderia questionar-se quanto tempo ele demoraria para começar a derreter, as ondas do calor de seu ódio poderiam ser vistas, sentidas ou simplesmente imaginadas. A resposta não demorou muito e deixou claro que não era obra da imaginação dele:
           – Você quer saber Fre-de-ri-co? Você tem certeza que quer saber? Porque no seu lugar eu não gostaria de ouvir as coisas que tenho vontade de dizer-lhe.
           – Acho que você me conhece suficientemente bem a ponto de saber que eu nunca faço perguntas em vão, não é? Então, Letícia, me diga. Se for o que você pensa, me diga.
           – Sim, é o que eu penso. Mas, nem sempre a verdade é o que queremos ouvir. Existe um tipinho de pessoa que prefere viver de ilusões. Você quer mesmo que eu lhe diga? Depois não vale dizer que não foi avisado. Se fazer de vítima.
           – Você, como pessoa culta que é, deveria saber que existe uma pujante linha entre o que as pessoas pensam e o que é verdade. Pensamento, na maioria das vezes é fantasia, Letícia. Mas, vamos: coloque as cartas na mesa.
           – Tudo bem, Frederico. Vou falar e você tira suas próprias conclusões. Entretanto, há uma exigência para que eu diga o que tanto me incomoda. Uma única exigência.
           – O que você quiser.
           – Você não pode se levantar antes que eu diga que terminei. Você ouvirá, mas ouvirá tudo.
           Frederico apenas assentiu com a cabeça, estava deveras curioso para saber o que se passava por trás daqueles olhos, daquela face tão delicada e que ele sabia, escondia um demônio. Gênio forte, difícil e indomável. Palavras que facilmente descreviam-na ou como ele mesmo proclamava aos quatro ventos – ordinária até a tampa. Letícia que não se sentia nem um pouco acuada começou a despejar as verdades sobre a mesa, foi direta:
           – Eu detesto você!
           – Aham – Completou ele, usando de uma grosseira ironia – Se você me detesta o que é que está fazendo aqui agora? – Olhou para o relógio – São exatamente vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos, você está num restaurante na zona sul, longe do seu apartamento, área central da cidade porque você precisava dizer que me detesta? Faz-me rir, Letícia, faz-me rir. Você nunca teve talento pra piadas, andou tendo algumas aulinhas?
           – Eu falo e você escuta, Fred. Eu te detesto não foi o bastante? – Ela bufou e olhou ao redor, seus olhos logo voltaram a enfrentar os dele e ela continuou – Eu preciso ser mais clara para que você entenda? Você nunca me entendeu mesmo!
           – Sim, você precisa ser mais clara. Se for possível, transparente. Porque não faz nenhum sentido, o que você está dizendo não faz sentido.
           Respondeu Fred, sabia que estava cutucando a onça com vara curta e riu, o que a deixou ainda mais furiosa. Questionava-se: Por que diabos esse demônio está rindo da minha cara? Pareço uma palhaça? Só pode ser. E mais uma vez decidiu entrar no jogo dele:
           – Tudo bem, Frederico, tudo bem. Você quer mais? Eu dou. Eu sempre faço as coisas do seu jeito, não é? Pois bem, se você quer mais. Você terá. Serei frígida e darei detalhes sórdidos sobre o meu ódio por você. Se você precisa que eu seja cruel para que entenda, bem, lá vamos nós, quero dizer - eu e minha crueldade. Eu detesto a forma como você fala, eu detesto todos os seus trejeitos e as suas pausas também.
           Ele não parecia nem um pouco incomodado, cruzou os braços diante do próprio corpo e permanecia ouvindo atenciosamente cada palavra que saía da boca dela. A cada instante ela se irritava mais, no entanto isso só era perceptível pela sua face que ficava mais e mais vermelha, o seu tom de voz era o mesmo desde o primeiro instante, nem baixo e nem alto demais, apenas audível e firme, não era do gênero dela dar barraco em lugar algum, tampouco num restaurante daquele padrão.
           – Eu não gosto de maneira nenhuma da forma como você me olha e sabe quando você analisa meu corpo inteiro quando me viro de costas pra você? Eu também acho medíocre. Você pensa que eu não sei? Toda mulher sabe quando é olhada da cabeça aos pés e ela nem precisa estar te vendo.
           Tudo que ela teve como resposta dele, foi a cabeça balançando para cima e para baixo, assentindo e como um pedido de: Vamos, será que você sabe mesmo brincar de ferir? Eu pareço alguém magoado? A indiferença aparente nos olhos dele era pior do que vê-lo dando um murro na mesa por ódio, quebrando os pratos e gritando, chamando-a de maluca. Ela queria e precisava de uma reação que parecia não vir. Ela se perguntava se faltava muito tempo para ele dizer que aquilo era coisa da cabeça dela. Homens. Levantou seu tom de voz em apenas um décimo para exclamar como forma de continuidade:
           – Meu Deus, como eu pude esquecer? Eu odeio quando você é grosseiro e segura meus dois pulsos com as suas mãos me impedindo de qualquer reação mulherio. Eu odeio quando você bebe. Eu não suporto quando você roça a sua barba por fazer na minha bochecha, no meu pescoço ou em qualquer parte do meu corpo pequenino.
           – Ah, então você está querendo dizer que eu sou a pessoa que você mais odeia no mundo? Continua não fazendo sentido. Você veio aqui por que mesmo? Afinal, você só começou a dizer por que eu tanto te incomodo quando eu perguntei, se eu não perguntasse você continuaria guardando tudo pra você e jantaria hoje comigo e outro dia, em outro lugar. E outros dias, em outros lugares, enquanto eu te convidasse e suportasse essa sua cara fechada? Letícia, de que planeta você veio?
           – A questão é justamente essa, você não agüentaria minha cara fechada por muito tempo, Fred. Você está acostumado com a Letícia que mais parece uma vaquinha de presépio, fica balançando a cabeça e te dizendo sim o tempo todo. Isso te incomodaria, isso te incomoda, isso te incomodou tanto que você perguntou, enfiou o dedo lá na ferida e fez tudo vir a tona. Você é curioso, você precisa de todas as respostas o tempo todo. Só acredita no que pode ser explicado, no que é óbvio. Por isso você não acredita em Deus, por isso você acha que eu não faço sentido pra você, eu não sou óbvia. Eu sou, como diria Clarice, um paradoxo incontestável. Eu sou isso aqui e daqui a pouco não sou mais.
           Ele se mexeu na cadeira, talvez tentando se acomodar diante das incômodas palavras que ela atirava contra ele. Era realmente ruim imaginar que a mulher pela qual ele morria de amores pensava tão mal assim dele, o odiava tanto. Ela percebendo seu desassossego inclinou um pouco seu corpo na direção da mesa, como forma de desafio e perguntou:
           – Você acha que está acabando? Nem pense em levantar daí, meu doce Frederico, quando eu acabar eu aviso e você enfia seu rabinho entre as pernas. Mas por enquanto seu único direito é permanecer sentado e em silêncio, de preferência. Quase como num tribunal, tudo o que você disser - e fizer - pode e será usado contra você. Qualquer ação sua pode me lembrar de algo que eu detesto, odeio ou não suporto em você, afinal, eu odeio tudo, – ela diminuiu em oito décimos o seu tom de voz e falou quase como num sussurro, como se fizesse uma confissão para ela mesma e apenas para ela. – Ou quase tudo mesmo. – Tomou um pouco de fôlego e sua voz voltou ao tom perfeito para aquelas palavras. – Então, para não arriscar a sua vida, permaneça sentado e em silêncio por que eu continuarei falando. Eu odeio o quanto você é grande. Eu odeio o quanto você se gaba por saber das coisas que sabe. Eu odeio cada palavra que saiu da sua boca desde o dia que você entrou na minha vida, todas elas. Detesto sua necessidade quase infantil de sempre querer me proteger. Eu não suporto enfrentar os seus olhos. Acho todas as suas piadas um saco e odeio quando você começa a falar línguas. Tá legal?
           Houve uma pequena pausa quando ela viu o garçom se aproximar, sorriu outra vez para o mesmo garçom enquanto ele servia os pratos e as bebidas. Desculpou-se pela pequena demora e se afastou, enquanto ele tomava certa distância Frederico se perguntava em como aquela mulher poderia dissimular uma felicidade que inexistia naquele momento, sem perder a pose, sem parecer maluca, sem parecer – sequer – dissimulada. Não atreveu-se a interrompê-la, vai que ela dissimulasse ser um dragão e soltasse de verdade fogo pelas ventas para fazê-lo crer? Letícia, no entanto, assistia a expressão confusa dele. Cortou seus pensamentos como se sua voz fosse uma faca realmente afiada:
           – Como se tudo isso não fosse o suficiente eu tenho toda uma lista. Mas, para não tornar isso tão monótono, porque a sua bunda deve estar ficando quadrada à uma hora dessas né? Então serei o mais direta que eu puder, tudo bem pra você ser desprezível? Eu odeio você inteiro, todinho, por completo. Todas as suas vísceras e vícios, da cabeça aos pés – passando por esse coração, ele bate por alguma coisa? -, odeio todas as palavras e atitudes, odeio até o seu nome e odeio aquela música (que por acaso tem o seu nome no plural) também.
           O barulho da faca de prata no prato de porcelana irrompeu a melodia única da voz dela, ele encolheu os ombros como se pressentisse que aquilo lhe traria alguns problemas. Aproveitou a deixa e sentiu-se no direito de dar uma resposta, como réu, no tribunal tinha o direito as palavras em sua defesa; quase perguntou para ela onde estava a bíblia para ele por a mão sobre ela e começar o discurso com o tradicional: “Juro dizer a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade em nome de Deus”. Mas, soube que poderia ser estrangulado ali mesmo ou que no mínimo, ela o mandaria calar-se e daria o veredicto final sem as palavras dele.
           – Pois bem, dona Letícia, respondendo a sua pergunta: Sim o meu coração bate sim por alguma coisa. E eu não preciso dizer pra você pelo quê, você é muito mais inteligente que eu, lê tudo o que fica nas entrelinhas, não preciso deixar tudo claro como água. Eu não acho que sou um ser tão desprezível quanto você me desenha, você acha mesmo que está sendo justa? Volto à questão inicial, você acredita estar dizendo mesmo a verdade? Ou isso tudo é apenas o que você quer acreditar? Você apenas quer, não é? Não vejo nos seus olhos você acreditando nisso, de fato.
           Ela se sentiu invadida com as palavras dele. Não sabia o que era pior, se ele contra-atacando ou sufocado atrás da inércia. O que ela de fato queria com aquilo? Pergunta, que nem ela saberia responder. Feri-lo como ela se sentia ferida? Coagi-lo como ela se sentia coagida? Não, ela não sabia qual era o objetivo principal de todo aquele desabafo. Adiantaria alguma coisa? Letícia soube, assim que as palavras terminaram de sair da boca dele, o que ele queria dizer com elas. Era por ela que o coração dele batia, do jeito grotesco dele, mas era por ela e isso ela não poderia mudar. Foi por aquele homem que ela tinha se apaixonado e se mudasse uma vírgula no que ele era, não seria ele. Seria o bastante? Não, nunca. Ela não acreditava no ódio que sentia por ele, embora o sentisse. Como ele disse, havia uma diferença entre pensar e ser fato, e também havia uma diferença entre sentir e crer. Orgulhosa como ela sempre fora, por mais que visse a derrota diante dos seus olhos, não se daria por vencida. Apenas para o seu travesseiro que outrora seria afogado por suas lágrimas salgadas, mas para Frederico, não.
           Viu ele levar a primeira garfada até a boca e em seguida, provou o vinho branco que ela tinha escolhido, limpou os lábios com o guardanapo de papel que estava ali, encaixou uma mão na outra e declarou-se todo ouvidos:
           – Por favor, continue, Lê.
           – Urgh! Odeio até a forma como você mastiga e como levanta o copo, odeio tudo em você. Você por inteiro. E por isso eu queria que você fosse pro inferno! E todo esse ódio não existe por acaso. Tudo isso tem um motivo e se você quiser eu te explico, é tão gostoso te torturar e mantê-lo sob o meu poder. Enfrentar os seus olhos e ver a sua curiosidade saltando pra fora, todas as minhas atitudes anulando a sua inteligência e te ver implorando para que cada palavra que eu diga pra você desvende um pouco de mistério, ou pelo menos te faça entender algum detalhe. Quando eu era criança eu aprendi que nós humanos só somos capazes de odiar aquilo que nos faz sentir inferior. Por isso, o meu ódio por você não é pequeno, é gigantesco! Você me faz sentir muito menor do que de fato sou.
          – Até que enfim uma razão. Agora e somente agora as coisas começam a fazer sentido para mim. Você me odeia por que se sente inferior, acha que eu quero fazer você sentir-se assim? Quanta bobagem.
           – Pare de ser ridículo e não me interrompa, você pediu para ouvir então ouça! Você quer motivos, eu os darei. Um por um. – Depois disso, todas as palavras poderiam ser ouvidas com um tom de choro, ainda que as lágrimas não saíssem de seus olhos e nem estivessem aparentes, as palavras soavam doloridas, como um desabafo. Toda a autoridade anterior fugiu para onde ninguém sabe. – Eu detesto a forma como você fala, porque você sempre sabe como me deixar sem palavras, a minha respiração é cortada a cada sílaba que sai da sua boca e as palavras que são minhas amigas, quando estou perto de você fingem que nem me conhecem e passam a milhas e milhas de mim. Os seus trejeitos são detestáveis também porque eles prendem o meu olhar de forma que eu decoro cada um deles. Isso sem falar nas suas pausas, elas me levam a loucura! Tem como não odiá-las? Eu não consigo, me fazem pensar no que você pensa e com elas fica muito mais fácil ouvir a sua respiração, que droga! Como eu posso gostar da forma que você me olha se essa é a forma que minhas bochechas se coram mais facilmente? Você conhece alguma mulher que gosta de se sentir envergonhada? Você me deixa sem graça com os seus olhares sobre mim. E quando eu me viro de costas e sinto o seu olhar sobre o meu corpo inteiro, da cabeça aos pés? Sobe um arrepio pela minha espinha e é difícil disfarçar, mas você insiste, você sempre faz da mesma forma.
           Frederico não sabia como deveria reagir, se a tomava pelos braços ou brigava com ela. Por quê? Não era preciso odiá-lo por aquilo, aquilo era ele, aquilo era o que ambos sentiam e não precisavam lutar contra. Era lindo, era imenso e melhor do que qualquer coisa, era simplesmente real. Sim, diferente de todos os contos de fadas, sim! Mas, o encanto estava exatamente ali. Na beleza da realidade. Então, interrompeu-a com uma pergunta, tentando fazê-la recuperar o fôlego, amenizar a dor. Ser a calmaria na tempestade dela.
           – Por que você me acha tão grosseiro, Letícia? Eu faço tudo o que posso por nós. Olhe só, quatro anos juntos do nosso jeito e estamos aqui, juntos do nosso jeito. E daí que os outros não entendem a nossa relação? E daí que todo mundo olha pra gente e pensa: Eles são malucos? Eu te pergunto, Lelê, e daí? Eu me preocupo com você.
           Ela, por sua vez, considerou melhor ignorar todas as meias verdades inteiras que ele também quis expor e continuou, como se só tivesse ouvido a primeira pergunta:
           – Pergunta errada, Frederico. Eu não te acho grosseiro, você É grosseiro. E não me venha com aquele papinho de que o que eu acho é diferente da realidade. Aliás, me faça um favor, não me venha com papinho algum. Chega de papinho, estou farta. Então eu respondo a pergunta correta: Por que eu odeio quando você é grosseiro? Isso é tão simples, eu me sinto como um bicho coagido que não pode fugir, porque quando você é grosseiro aquele amigo paciente, leal e atencioso que parece estar sempre ali, vai embora. E então, o que eu tenho em troca? O homem que mexe comigo das mais variadas formas, o canalha que me deixa sem reação alguma. Aquele mesmo que quando me vê a ponto de ter um ataque de nervos segura os meus pulsos, o que por sinal, eu também odeio. Mas, vale deixar claro, Fred, que não é só porque você aperta sem dó nem piedade e acaba me deixando dolorida e sim, porque inevitavelmente você me puxa para mais perto de você e caramba, eu sinto o calor do seu corpo, ouço a sua respiração com uma facilidade sem tamanho e inalo o cheiro do seu perfume que a essa altura já se misturou com o meu. Sem contar que assim você me impede de qualquer reação. Diga-me, você acha possível eu socar os seus ombros com os meus punhos fechados se eles estão seguros entre as suas mãos? Pense, querido, pense. Minha força nem se compara com a sua. Abaixe a taça de vinho, Fred, eu sei que foi eu quem escolhi, mas eu odeio quando você bebe! Eu odeio, porque você não colabora comigo. Eu trabalho o tempo todo para não pensar em você, para te esquecer e quando você bebe, em trinta minutos destrói tudo, a minha mente que estava começando acreditar que é melhor eu fingir que você nunca existiu e que está na hora de partir pra outra, chamar pelo próximo da fila que se quer saber, é bem bonitinho, você acaba com tudo. Vem dizendo coisas que eu não quero ouvir, na verdade, as coisas que não deveria ouvir para conseguir esquecer. As coisas mais lindas do mundo, quando você bebe fica transparente. Esquece a armadura de Chuck Bass e quem aparece é você, o cara que me roubou de mim. E quer sinal mais claro do quão frágil eu me torno perto de você como quando você roça a sua barba por fazer em mim e o meu corpo todo se arrepia como se implorasse mais e mais pelo seu toque? É por isso que eu te odeio, porque eu não consigo esconder o quanto você mexe comigo. Fica claro o quanto eu sou vulnerável perto de você.
           Se algo que o Frederico dissesse poderia ajudar Letícia em alguma coisa, ele não sabia o que era, por isso optou mais uma vez pelo silêncio. O que não a incomodou de forma alguma, quanto mais rápido ela pusesse tudo pra fora e pudesse ir embora, era melhor. Pelo menos, era o que ela estava pensando quando continuou:
           – Eu odeio o quanto você é grande e mais ainda, com todas as minhas forças a facilidade com a qual seu corpo envolve o meu e me faz sentir protegida de todas as coisas, de todos os males que existem no mundo. Coitadinha de mim, pobrezinha, você não acha Fred que eu deveria ser menos ingênua e saber que o maior mal do mundo pra mim é não estar nos seus braços? Eu odeio de verdade o quanto você sabe das coisas e me deixa pasma a cada argumento. Eu odeio o fato que você é a única pessoa que me vence em uma discussão, ainda que pelo cansaço. Você sabe disso, não sabe? Eu te odeio. Odeio cada palavra que você disse para mim desde que nos conhecemos e me odeio ainda mais pelo fato de não conseguir esquecer nenhuma delas. Por que, Senhor, por quê? Sem falar no quanto eu detesto sua necessidade quase infantil de me proteger como se eu fosse um tesouro, como se eu fosse quebrar. Odeio de tal forma que nem tenho palavras pra você. O que é que você tem na cabeça? Me proteger de quê? Pra quê?
           Por mais estranho que pudesse parecer, Frederico continuava comendo. Sabia que nada do que ele dissesse para fazê-la entender que não era preciso odiá-lo, ou qualquer palavra simples em sua defesa seria inútil, além de tudo, Letícia era cabeça dura, quando colocava algo ali, nada fazia desistir daquela idéia. Então, a postura dele foi simples: Olhava-a o tempo todo nos olhos e vezenquando acenava positivamente com a cabeça, entre uma garfada e outra para mostrar-se interessado. Nenhuma atitude além dessas lhe convinha.Uma hora, ela se sentiu pressionada e desabafou de forma mais clara e infinitamente sincera:
           – Eu não suporto enfrentar os seus olhos e ver neles o quanto é real tudo o que você diz e até o que você não diz, como por exemplo, agora: Você não diz nada, mas eu sei tudo o que você está pensando. O quanto você está planejando cada atitude sua para que eu não surte, não diga que você não está prestando atenção ou algo do tipo. Eu já disse que odeio entender o seu silêncio, a sua fuga? Pois é. E as suas piadas? Pode me dizer por que eu rio delas? Devo ser mais tosca do que você para rir de piadas tão toscas, patéticas, ridículas. Eu não sei nem porque eu rio delas, não sei nem porque eu rirei se você disser: “Vou te contar uma piada... Letícia!”, é tanto interesse em você que eu odeio isso. Sim, sim, quando você fala italiano eu também odeio, assim como quando fala alemão ou latim, eu odeio quando você acha um meio novo e inusitado de prender minha atenção. Toda minha dedicação a você ainda não é o suficiente? Eu odeio isso. Eu odeio não parecer o suficiente e tenho tanto medo.
           E tinha tanto medo. Tinha medo de não ser compreendida, medo de ser colocada de lado como um troféu que já foi conquistado e não tinha mais valor. Porque sim, Frederico já tinha conquistado-a desde o primeiro instante, o primeiro sorriso, o primeiro cuidado. E era isso que ela odiava, a essência do relacionamento deles: a facilidade com a qual ele lidava com tudo o que para ela era tão complicado. Ele simplificava até a matemática, coisa que ela não entendia e não suportava. Por que para ele era tão fácil? Por que só ele conseguia? Era tudo o que ela queria, uma resposta: uma exclamação onde para ela era apenas uma interrogação cheia de ênfase. E por isso, ela prosseguiu. Estava decidido, iria até o fim:
           – Odeio-te inteiro e conheço cada detalhe, de cor e salteado, de frente pra trás e de trás para frente, de cima abaixo e de baixo até em cima. Se você quer saber, acho que posso te desenhar com requinte de detalhes, com os olhos fechados, quer fazer o teste? Pegue a venda e um pedaço de papel. Eu faço, anda, vamos!
           Ele riu não sabia se de nervoso ou por ter certeza que aquela maluca tinha sido feita para ele, era a forma perfeita. Então ele esticou a mão ao encontro da mão dela e desta vez, ela não recuou, ele continuou brincando com os dedos sobre o dorso da mão delicada e macia dela. E quando viu a insistência dela para que ele arrumasse caneta e papel para ela brincar de caricaturista, respondeu:
           – Não, meu amor. Não precisa. Eu acredito em você.
           – Odeio todas as suas vísceras, todos os seus vícios e tudo que há em você. Odeio, odeio, odeio, odeio-te, meu amor. Odeio também o seu nome e aquela música que tem o seu nome no plural, um só já não é o suficiente, meu Deus? Não sai da minha cabeça, da minha playlist, da minha vida e parece que foi você que escreveu pra nós, felicidade é ter a minha mão na sua? Ah, me poupe, odeio ela também, odeio muito. Odeio a forma como o seu maxilar se movimenta quando você mastiga e odeio seus olhos quando me mastigam e me devoram também, como agora. E quando você levanta o copo sem desviar seus olhos de mim? Veja bem, meu amor, se eu mereço! Eu odeio.
           – Você merece. – Disse ele com um sorriso um pouco discreto e as palavras pareciam brincar entre seus lábios que a convidavam a todo o momento, embora ela também teimosa, reclinasse.
           – É eu mereço. Já garanti a minha, a sua, a nossa passagem pro inferno de primeira classe, com direito a champagne francês e conversinha com o piloto na cabine. E tudo é culpa minha, ou sua. Na verdade, qual é mesmo a diferença? Não somos a mesma coisa? Metade é metade, não importa qual delas. Se você, ou eu. De qualquer forma, eu odeio, detesto, não suporto. Que merda! Quem você acha que é, hã? Diga-me, por favor, porque eu não consigo entender. O que foi que você fez comigo? Quanto você pagou pela metade da minha alma? Eu pago o dobro pra você me devolver, eu pago. Caramba, porque eu sou tão sua? Eu não fiz essa escolha, eu não quis me entregar de bandeja assim pra você e acabou acontecendo.
           – Pra quê o pânico, amor? A maioria das pessoas do mundo passa a vida inteira procurando a tal metade da laranja, a alma gêmea ou essa pessoa que você é a na minha vida e eu sou na sua e você está nessa paranóia? Eu não acho que sou ninguém, ninguém além da sua outra metade e eu também não escolhi fazer isso, não paguei por nada e também me senti acuado quando me vi diante dessa situação: Mas, escuta Letícia, o que é que eu vou fazer? Por que é que eu vou reclamar se estar com você é a melhor coisa do mundo pra mim? Se nenhuma pessoa do mundo me faz tão bem quando você com um simples sorriso, eu te amo ou até com essa paranóia toda? Se fosse qualquer outra pessoa apontando tudo isso em mim como defeitos eu já teria levantado e ido embora nos primeiros cinco minutos. Agora não, eu estou aqui com você.
           – Esse é o problema Fred, é exatamente esse. Você está aqui agora. E daqui a pouco? Eu fico sem saber como agir e se quer saber, nem sei se devo agir de alguma forma. Daqui a pouco você vai embora e eu continuo aqui, sendo apenas metade. Isso é muito ruim. Se fosse qualquer pessoa eu poderia continuar sendo a Letícia autoritária, mandona, chata, ordinária, fresca, mimada e todos os outros adjetivos subseqüentes, no entanto, quando é você é diferente. Eu sou só metade. As outras pessoas fazem parte da minha vida? Sim. Devo muito à elas? Exato. Mas, é só você que faz parte de mim. E é por isso que eu odeio tudo isso, não dá pra você, por obséquio, decidir onde quer ficar? Agora quem te pergunta sou eu: Onde está o sentido de tudo isso? Porque você faz tudo isso pra depois ir embora? Você acha justo? É por isso que eu te pergunto: Quem você acha que é? Quem te garantiu todos esses direitos e onde foi que eu assinei? Por favor, me mostre ou apenas me diga quais são as vantagens. Se você quer ir embora, não sou eu que vou te segurar, não serei eu a pessoa que vai chorar e espernear até você ficar com pena e decidir ficar de vez, pra no primeiro problema você olhar pra minha cara e falar: “Se eu estou aqui foi porque você pediu”. Não vou te obrigar a ficar pra você se achar no direito de fazer o que bem entender. Não vou, essa não sou eu. Essa não é a sua metade. Sabe o que eu fico pensando? Você sabe? Não, você não sabe.
           – Então, por favor, simplifique as coisas e me conte.
           – De que adianta eu dedicar uma atenção minuciosa as suas palavras e permitir que minha respiração compactue com o seu silêncio se daqui a pouco você fecha a porta atrás do seu corpo e me deixa aqui, sozinha? Será que eu decoro seus trejeitos todos para conseguir respirar quando você me abandona? Por que você faz isso? Anda, fale agora senhor de todas as respostas, vamos! Está aí, mais uma de suas pausas que eu entendo, você não tem argumentos agora. Sua respiração está assim tão pesada porque você está nervoso, meu amor? Não fique assim, apenas me diga por quê. É só isso que eu estou te pedindo, é tão difícil? E depois que você fecha a porta, você me olha da cabeça aos pés através do vidro? Você é detestável e ainda assim eu consigo te amar. Sou pior que você?
           – Uma de cada vez. Você sabe de todos os motivos pelos quais eu vou embora, assim como para você, para mim não é fácil ver isso que eu não entendo acontecendo com a gente. Mas, você sabe que nem por um segundo eu deixo de pensar em você, de me preocupar com você. É claro que é difícil, Letícia, tanto pra você quanto pra mim e para qualquer outra pessoa, se passasse com isso também chegaria bem perto da loucura. Você não é pior, você é única.
           – Fred, não adianta você se preocupar comigo. Saber que você pensa em mim não diminui em hipótese alguma a minha saudade. É difícil? É. Minha sanidade está sempre por um fio, mas você não acha que seria muito mais fácil pra nós dois enfrentar tudo juntos? Agora se eu não tenho você aqui nem para ser grosso comigo, é a pior coisa do mundo, sabe? É pior que todos esses questionamentos. É pior do que aguentar o seu mau-humor. Lidar com a saudade é terrível, me pergunto o tempo todo onde está você. Torço pra você chegar e me dizer qualquer coisa, até sei lá: Você é idiota. É melhor ouvir isso do que a aturar a presença tão solitária da sua ausência que é minha companheira na maior parte do tempo. Você quer uma dica? Quando não souber o que fazer segure meus pulsos e vamos brincar de quem pode gritar mais alto, quem tem forças pra criar uma ferida mais profunda, qualquer coisa, menos isso. Venha, macho fecundador, quando você quiser um tempo pra ficar longe de mim, se aproxime de mim e eu te dou motivos para isso. Você não quer me impedir de espernear e de deixar claro o quão infantil, mimada e ridícula eu posso ser? Deixe-me te bater, descontar todo o meu ódio de você em você. Não vai doer você sabe... não porque eu sou pequena, não porque eu sou frágil, não por isso, mas você nunca ouviu falar? Tapa de amor não dói, deixa eu te espancar com as minhas verdades.
           Ela respirou fundo e tomou fôlego antes de continuar com as palavras que doíam mais nela do que em qualquer outra pessoa e isso o incluía:
           – Você é ridículo, me roubou de mim e faz o que quiser, estou aqui para me pedir de volta! Eu preciso de mim. Fez a barba por que, mocinho, não quer encostar-se em mim? Não quer? Tudo bem, fique longe, mas me devolve. Eu fecharei os olhos enquanto você estiver por perto, pra que você não perceba, quem sabe dessa vez eu consiga fingir. Fingir o quê? Bem, qualquer coisa já é um bom começo. Não dar tanto na cara que eu gosto mesmo de você bem do jeito que você é, seria ótimo.
           – As coisas não são exatamente assim e você sabe. Mas, nada do que eu diga será suficiente para te convencer, né? Você é cabeça dura, Letícia. Você é. Coloca a ideia na cabeça e nunca desiste dela. É demais pra mim.
           – Tem coisas que eu me pergunto o tempo todo. Uma delas é: Será que é bom ser cabeça dura assim? Porque se eu não fosse, certamente teria jogado tudo pro alto. E tem mais, de que adianta você ser tão grande se essa distância que você impõe é maior ainda? Você fala de mim, mas é pior. Quando você decide que a melhor opção é ficar longe, parece que acredita que não é só a melhor opção, como a única saída. Você tranca a porta e eu fico de mãos atadas. Por que você me abraça, se depois você vai embora? Por que é sempre a mesma história? Por que, Deus, por que eu não posso fazer diferente só dessa vez? Venha agora, exponha os seus argumentos e me faça calar a boca, me dar por vencida, mas é pra já. Amanhã não interessa. Quem garante que eu vou estar aqui em cinco minutos? Posso muito bem pegar minha bolsa, entrar num táxi e sumir da sua vida. Você disse todas aquelas palavras para ficar tanto tempo em silêncio, agora? E você tem essa maldita necessidade de me proteger do mundo pra depois fazer com que eu me sinta uma menor abandonada? Onde está o sentido? Você não sente mais nada? Feche os olhos, não deixe que eu te leia agora ou você vai cair no vão do seu papel de vilão. Ok, pode chegar, eu não vou fazer você se sentir um babaca rindo de qualquer coisa que você disser, mas diga. Faça-me sentir o bastante pra você. É só isso que eu quero.
           – Você é o bastante e se você não se sente assim, eu não sei o que fazer. Você pode me ler, eu não preciso te esconder mais nada. Tudo o que eu sei está nos meus olhos, na minha testa e o meu corpo todo explica como eu me sinto ao seu lado, Letícia. São sinais pequenos, mas se você unir um a um você vai ver que você é a pessoa mais importante da minha vida e com uma diferença absurda da pessoa que se encontra em segundo lugar.
           – Você também é assim. Na minha vida é: Você, você, você, eu e depois um alguém que me faz sorrir, que me escuta. Não importa quem, qualquer um pode chegar e tomar esse posto à qualquer momento. Mas o seu lugar não. E por isso o ódio que eu sinto por você não se compara a nada, a nenhuma outra coisa do planeta que eu deteste, até no ódio você é superior. Odeio, continuo odiando o quanto eu presto atenção em cada detalhe, por menor ou singelo que seja ele. Tudo bem, se você quiser, eu jogo fora todos os meus rascunhos de você, eu aceito o agora sem pretensões futuras, o final feliz eu deixo pro final. Mas que inferno, homem, venha. Se for preciso eu ignoro a música na playlist cada vez que ela começar a tocar ou então eu canto, eu grito pros vizinhos ouvirem. É só você me dizer o que quer e decidir ficar para sempre. Quero assistir o movimento do seu maxilar quando seus lábios contarem do que está cheio o seu coração. Eu quero, por favor. Volte, se for para sempre ou fique longe de mim, mas só se for a sua vontade. Eu só não quero o meio termo: Adeus ou até daqui a pouco, afinal, eu odeio-te, meu amor.

2 comentários:

Gabriela Castro disse...

Que saudade eu estava daqui, das suas palavras e de você. Não posso ficar longe por muito tempo. Perco tanto.
beijão, Jô.

Debbys disse...

nossa, isso renderia uma crônica, merece um livro!!! simplesmente adorei!!! saudades daki!! xD
bjsss